terça-feira, 2 de junho de 2009

O MUNDO MATERIAL É UMA SOMBRA DA VERDADEIRA REALIDADE


O MUNDO MATERIAL É UMA SOMBRA DA VERDADEIRA REALIDADE

“Em todos os lugares, nas diversas tradições, dentro dos seus costumes, um dos fundamentos de garantia de qualidade vida é de alguma maneira relembrar, todos os dias, a verdadeira realidade, a verdadeira Origem.”

KAKÁ WERÁ JECUPÉ

Kaká Werá Jecupé é índio de origem tapuia, autor dos livros: Tupã Tenondé, A terra dos mil povos - História indígena do Brasil contada por um índio e As fabulosas fábulas de Iauaretê (pela Editora Peirópolis) e Ore Awé – Todas as vezes que dissemos adeus (pela Editora Triom). Ambientalista, conferencista é fundador do Instituto Arapoty, organização voltada para a difusão dos valores sagrados e éticos da cultura indígena.
Tem como missão ajudar na construção e no desenvolvimento de uma cultura de paz pela promoção do respeito à diversidade cultural e ecológica. Já viajou e palestrou em diversos países, entre eles: Inglaterra, Estados Unidos, Israel, Índia, Escócia, México e França, sempre procurando levar mensagens da sabedoria dos povos ancestrais do Brasil.
Neste bate-papo, Kaká fala sobre ecologia interior, como se iniciou no caminho do curador, e enfatiza a importância da re-conexão com a natureza e a verdadeira origem. Que suas palavras sejam formosas em seu coração amigo-leitor e que incentive a leitura do livro sagrado da natureza.

SAMUEL SOUZA DE PAULA

Espiritualidade Natural - Em nosso convívio cotidiano, dos chamados “tempos modernos”, observamos que boa parte da humanidade sobrevive numa intensa busca desenfreada pelo “ter”, “possuir”, “adquirir”. Talvez, seja esta uma das causas que tenha colaborado com a ocorrência da perda de conexão com o Sagrado, do viver o tempo interno e com os valores ligados à natureza. Neste sentido o que o levou a se dedicar à cura e qual a importância que atribui as cerimônias no círculo de cura indígena?
Kaká Werá – Bom, na verdade, o ser humano como um todo se habituou e de certa forma é natural que seja desta maneira: considerar o mundo material como a única realidade plausível. E isto faz com que ele adormeça, ou esqueça, essa noção. E dentro desta noção existe um princípio muito profundo. De que na verdade o mundo material é só um reflexo do mundo verdadeiro e o mundo verdadeiro não é visível aos olhos. O ser humano esqueceu disto. Em todos os lugares, nas diversas tradições, dentro dos seus costumes, na diversidade cultural, um dos fundamentos de garantia da qualidade de vida é de alguma maneira relembrar todos os dias a verdadeira realidade, a verdadeira origem. E a origem é interior, não é palpável. A realidade material é feita de um princpio que é a matéria. Embora as culturas indígenas não façam diferença entre o Sagrado e o não-sagrado – não que o mundo material não seja tão sagrado quanto o espiritual, o fato de haver na sequência do desenvolvimento da sociedade humana uma série de desequilíbrios por conta de toda uma vida voltada para a matéria, para o mundo exterior e para o ter, é uma das razões que gerou desequilíbrios mais íntimos, mais profundos.

Uma perda de conexão com o mundo interior e o mundo verdadeiro...
Sim, nesse sentido, além do mundo interior ser um ponto de conexão com uma verdade maior, ele também acaba sendo um caminho de cura. Porque quando você resgata a origem, quando resgata o lugar de onde flui a vida, quando resgata a fonte que é interna e imaterial, consequentemente você resgata o princípio de equilíbrio, de harmonia. Na verdade, nem o meu trabalho pessoal, nem o trabalho de qualquer cidadão indígena tem como base a cura no sentido como uma doença, mas tem como base a eterna necessidade de re-consagrar na Fonte, enquanto você vive no mundo material. Para você ter uma idéia, o povo guarani, por exemplo, considera a realidade somente à sombra do mundo verdadeiro. A vida material somente o desdobramento de um sonho.

Como você se iniciou no caminho do curador?
Pelo fato de eu ter nascido, sido criado e ter vivido fora de uma aldeia, absorvi na primeira etapa da minha vida todos os condicionamentos, e de certa forma, os costumes, os hábitos de um mundo, vamos chamar assim de um mundo doente, um mundo distante do sagrado, isto fez de mim uma pessoa também, de certa forma, adoecida. Quando comecei a trabalhar com a comunidade indígena, conviver, interagir e reconectar com parentes próximos que estavam distantes. Mesmo sendo em momentos de lutas e batalhas por diversas questões, coisas de manutenção de território. Eu reparei que a comunidade vivia de maneira muito mais saudável espiritualmente do que os não-índios. E como a sociedade não-indígena normalmente vê os povos indígenas deficientes social, politica e tecnologicamente, não se dão conta de que estes povos são profundamente saudáveis. A minha história de cura começa na minha auto-cura pela convivência com diversas culturas, diversas pessoas que nem dá para precisar este ou aquele. E eu fui me tornando uma pessoa melhor pela assimilação de determinadas verdades bem simples, mas profundas. Uma delas, aquela que me disse que: “o mundo material é somente uma sombra da verdadeira realidade”.

Pela convivência incentivadora da aprendizagem, da busca do auto-conhecimento?
Pelo meu desenvolvimento, pela minha curiosidade, pela minha vontade de aprender. Eu transformei esta cura num caminho mais profundo, num caminho de auto-conhecimento. E este caminho de auto-conhecimento foi feito pela via da cultura indígena, mais especificamente pela via da filosofia guarani e tapuia, que são as minhas duas convivências maiores. Tapuia por ser a origem da minha família, dos meus pais, meus avôs. E a tupi-guarani pela convivência.

Certa vez você me contou da admiração por Orlando Villas Boas...
Tive a oportunidade de estar com ele, de passagem em uma das palestras nas escolas para educadores, no Sesc, no início dos anos 90. A partir daí, a gente teve uma conversa muito longa, ele adorava falar e transmitir, na época que o conheci, ele já tinha uma experiência de mais de 50 anos com povos indígenas e dominava seis dialetos. Então, eu o considerava um verdadeiro ancião. Eu tinha muito o que aprender e aproveitei a oportunidade.

Como podemos dimensionar os tipos de cura?
Eu acho que a gente tem que dimensionar algumas noções de cura. Tem um tipo de cura que é a cura de uma doença física, que tem os seus especialistas. Tem aquela dimensão da cura que é da cura da alma, da cura do ser, que inevitavelmente vai refletir também numa cura da expressão física desse ser. Os povos indígenas com a sabedoria indígena, embora com muitos conhecimentos de remédios que curam dores e cortes físicos, se dedica com grande notoriedade à cura da alma, à cura espiritual.

Existem diversos métodos, indígenas e não-indígenas, que são utilizados com a finalidade de alcançar um equilíbrio, uma saúde integral, harmonia e paz de espírito.
De alguma maneira na sociedade não-indígena, este é trabalho dedicado à psicologia, de uma maneira bem diferente das dos povos indígenas. Para os povos indígenas a base, o fundamento, da cura da alma é o ser humano estar em harmonia com a natureza. E ai é o mérito da cultura indígena é que essa medicina de alma é extremamente ecológica. Porque a tradição indígena vai dizer que a alma se renova através da natureza e de suas energias. Diversas tradições desenvolveram diversos métodos, diversos sistemas, para reaproximar a alma humana das forças primordiais da natureza. Água, terra, trilha, folhas e a energia do próprio sol, da lua que cura.

A reaproximação com a Mãe Terra, a natureza tão importante para o reconhecimento da natureza interior.
Sim, todos os métodos foram desenvolvidos para realizar este trabalho, que a princípio é bem primordial, bem simples. A lógica alma sadia é igual a natureza em harmonia e natureza em harmonia é alma sadia. Existe uma crença nas tradições de que a alma humana descende direto da natureza. Embora, o corpo físico e a ciência não-indigena tenha chegado numa grande complexidade de conhecimentos, da genética, da anatomia física, os povos indígenas vão dizer que além dessa influência, informação e constituição, a sua alma tem a co-origem na própria Mãe Terra. É a mesma tessitura, a mesma energia.

O que é Tupã Tenondé e suas palavras formosas?
Tupã é o equivalente a Deus. Tenondé é O Primeiro. Tupã Tenondé é uma compilação, esses registros eram totalmente orais até o século XX. São cânticos que falam de toda cosmovisão guarani dos últimos milênios, que foram passados oralmente de geração à geração, não podemos dizer desde quando, é imemorial. Estes cânticos geraram, talvez, o primeiro livro sagrado neste lado da América do Sul nas últimas centenas de anos, pelo fato de que a tradição indígena é uma tradição mais oral. Tupã Tenondé foi um livro escrito com autorização de um grande sábio guarani, chamado Pablo Werá, do povo guarani do Paraguai, porque ele sonhou que tinha que deixar registrado em livro ensinamentos que são passados de geração em geração por via oral, através de cânticos que são feitos todos os dias nas aldeias guaranis e isto provocou uma polêmica muito grande na época: de um lado pela própria comunidade que defendia que tais ensinamentos não deveriam ser escritos e, de outro lado, provocou uma surpresa muito grande, na cultura não-indígena, porque eles foram redigidos pela primeira vez por um paraguaio de nome Leon Gadogan, que recebeu a autorização de taquigrafar os cânticos enquanto o pajé cantava. E depois o pajé autorizou a escritura destes cânticos. A primeira versão foi traduzida como Ayvu Rapyta Os Fundamentos do Ser.

Qual a importância da palavra e do silêncio para os tupi-guaranis?
O ser humano é uma palavra habitada. Na visão da tradição tupi-guarani, através de Tupã Tenondé, nós seres humanos somos um som. Somos uma vibração, um canto do próprio Criador. E este som que nós somos, com seu corpo físico – graças à própria Terra. A natureza vestiu o ser humano de um corpo, que é o seu corpo físico, e no entanto, este corpo físico, que muitas vezes é confundido com a pessoa, é só a casa do ser. O ser que somos nós se manifesta pela palavra, pelo som, pela expressão. A importância maior da palavra está no fato de que ela tem um poder, que o mesmo Criador tem, que é o poder de criar. Na filosofia tupi-guarani, cada vogal, cada palavra, quando sai da nossa boca, sai junto com o poder criador porque é uma herança que trouxemos diretamente do céu. A ferramenta criadora da qual somos portadores. Só que esta ferramenta criadora precisa se aprimorar, precisa ser lapidada e uma das ferramentas que ajuda na lapidação é o silêncio. Pela porta do silêncio, você encontra alguns caminhos: a auto-observação, a reflexão, a meditação.

Existe uma frase atribuída a Gandhi, na verdade um conselho, e talvez excelente para meditar, refletir os valores da cultura de paz, que é: “Seja a mudança que você quer ver no mundo!”. Quais seriam, então, as principais atitudes para o desenvolvimento de uma cultura de paz?
Na verdade, é muito bonito falar em cultura de paz e politicamente correta, quando eu reconheço que é uma das coisas mais difíceis de pôr em prática em diversos níveis. Eu mesmo tenho uma dificuldade pessoal de colocar em manifestação esta postura de paz. Eu vejo que para realmente acontecer a cultura de paz ela tem que acontecer pelo menos em três níveis: social, ecológico e pessoal.

O que tenho observado, inclusive, é que este desafio é crescente nos diversos níveis.
Sim. No nível social de certa forma é fácil, porque quando você presta um serviço, um trabalho comunitário, ou alguma atividade social você está impulsionando aquela ação e com certeza isto vai gerar uma cultura de paz. No nível ecológico o esforço é um pouco maior, porque a gente tem uma dimensão da ecologia muito utilitária. Então, a primeira coisa que requer na minha visão de esforço, no nível ecológico é tirar esta visão da natureza como uma coisa utilitária, ou seja, parar de ver a natureza apenas como recursos – e é muito difícil a sociedade ver isto. Passar a ver a natureza como se fosse você, como um espelho mesmo. Aí você faz o terceiro ponto, que é mais difícil ainda, que é a questão pessoal. Formar uma cultura de paz requer ações internas. Muitas vezes as pessoas, e também algumas organizações, falam de cultivar a tolerância, mas eu acho que a tolerância não é suficiente. O que Gandhi diz é de muita profundidade, muita sabedoria, devemos ser a paz que queremos ver no mundo. Começa por aí mesmo e no nível pessoal a gente precisa quebrar algumas visões distorcidas de paz.

Poderia exemplificar uma destas visões distorcidas.
A primeira visão distorcida de paz que precisamos quebrar é que paz é passividade. Não é! Paz requer respirar, entrar em silêncio, auto-observar. Requer determinadas ações internas, nós temos que ter muita vontade, para poder trabalhar isto.

Como cada palavra possui vida, tem um espírito, se estamos conscientes e presentes nela. Passo o bastão da fala para que deixe uma mensagem aos corações-alma de nossos leitores da “Espiritualidade Natural”.
No dia 06 de junho no Instituto Arapoty, nós vamos trabalhar um tema chamado justamente Ecologia Interior, todos estão convidados para participar. Para maiores informações acesse o blog: http://institutoarapoty.blogspot.com/ ou http://kakawera.blogspot.com/.
A mensagem que eu proponho está dentro desta idéia de ecologia interior. Aqueles que estão no caminho da espiritualidade, na busca de um entendimento maior das coisas do espírito, em algum momento na vida, em algum momento desta jornada, vai se colocar diante da própria terra, da própria natureza. Se você observar os Mestres de todas as tradições não-indígenas: São Francisco de Assis, os antigos rishis tiveram profundas conexões quando subiram a montanha e se refugiaram na floresta. A imagem que temos de Buda, quando ele atingiu a iluminação, é dele sentado debaixo de uma árvore na floresta. Então a mensagem que eu deixaria é para você observar a natureza como um livro sagrado para encontrar as respostas mais profundas do nosso ser, da nossa alma, para quem está no caminho da espiritualidade, para quem está na busca. Porque quem não está no caminho da espiritualidade ou para quem está iniciando o caminho a natureza serve como cura. Mas para quem está no caminho, já passou da fase da cura, a natureza acaba sendo uma conexão, como um livro, como aprendizado: prestar atenção nesta Grande Mãe.


EU, VOCÊ E A NATUREZA SOMOS UM SÓ

“Se observarmos do ponto de vista da matéria vamos perceber que somos compostos de minerais, que estão por todo o nosso organismo físico e celular. Vamos observar que temos a nossa herança biológica dos vegetais e também dos animais. Além disso, nosso organismo tem o mesmo percentual de água analogicamente ao que a Mãe Terra possui.
Se observarmos do ponto de vista das tradições místicas mais antigas, somos uma síntese dos quatro elementos: terra, água, fogo e ar; que influenciam em nossos temperamentos, em nossas características psicológicas, e também físicas.
A natureza está em nós e nós estamos na natureza, e embora a ciência, a tecnologia, o pensamento humano se tornam cada vez mais complexos, tudo que existe provêm da natureza.
É por este motivo que devemos honrá-la, agradecê-la e reverenciá-la. Ela se transforma em teto para nosso conforto, tecnologia para nossas atividades, roupa para nosso corpo, remédio para as nossas desarmonias, alimento para a nossa fome. Além disso, nos demonstra que a vida é doação, serviço, amor, renovação e impermanência.” – Kaká Werá.

6 comentários:

Mon Liu disse...

O Kaká é o máximo! Eu não o conheço pessoalmente, mas sou fã dele. Salvei o seu blog em favoritos e visitarei com frequência. Abs.,

Mon Liu.

Samuel Souza de Paula disse...

Olá Mon Liu, que esteja bem! É verdade, o Kaká é uma pessoa admirável e inspiradora. Fico contente que o blog Espiritualidade Natural é um dos favoritos, seja sempre bem-vinda. Abraço, Samuel

Edison Porto disse...

Em 2004 recebi um e-mail de um acionista suiço da empresa onde acabara de ingressar,no qual me foi repassando o convite para uma palestra do Kaká numa multi-nacional aqui em São Paulo. Interessante como do exterior veio o empurrão para eu ter contato com um genuíno brasileiro como o Kaká.
A palestra foi ótima e na época anotei o máximo que pude sobre ela e repassei para amigos.
Os ensinamentos do Kaká, o bate papo com ele após a palestra, as semelhanças com tudo que eu aprendia com você Samuel, Wagner Borges e outros no IPPB, as semelhanças com o Taoismo, tudo isto me fez ver como é interessante que em todas as épocas, em todas as culturas, a nossa busca é a mesma e tudo se resume à simplicidade do viver com discernimento, bom humor e muito Amor.
Um forte abraço do amigo e admirador.
Edison Porto

Blog do João Maria andarilho utópico disse...

Vc cita que o mundo é aomsbra de uam realidade.
Esta frase não seu. cie o autor.

Samuel Souza de Paula disse...

Olá João Maria, que esteja bem!
Esta frase foi uma das falas sintese da entrevista que realizamos em 2009 com o indio tapuia Kaká Werá. Desconheço outra autoria. Por favor, compartilhe seu conhecimento de outras fontes. Um abraço, Samuel

Samuel Souza de Paula disse...

Olá Edison, que esteja bem!
Gratidão! Gratidão por seus comentários, carinho e sintonia. Que possamos aprender cada vez mais com todas as culturas, mantendo a vivência da simplicidade com discernimento, bom humor e amor que compartilhou.
Gratidão!
Um forte abraço,
Samuel